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Por que precisamos falar (mais uma vez) sobre a adultização infantil na internet

Provavelmente você já viu ( ou pelo menos ouviu falar) sobre a denúncia que o youtuber Felca publicou recentemente. O vídeo viralizou e, embora tenha nomes e casos específicos, o ponto que mais me interessa aqui não é falar sobre as pessoas envolvidas, mas sobre a pauta que ele trouxe à tona: a adultização e a exploração de crianças nas redes sociais.

Esse não é um assunto novo, mas a forma como ele voltou para o centro das conversas mostrou que ainda precisamos falar sobre isso e muito.

Quando visibilidade vira responsabilidade

Felca não começou a produzir conteúdo ontem. Nos últimos anos, ele construiu uma base enorme de seguidores, principalmente por meio de vídeos de humor e críticas bem-humoradas a fenômenos da internet. E é justamente por já ter essa audiência que o impacto da denúncia foi tão grande.

Quando alguém com milhões de seguidores decide usar esse espaço para falar de um problema sério, a mensagem chega a lugares que normalmente não chegaria. É como se, de repente, a conversa saísse da bolha de quem já se preocupa com o assunto e alcançasse pessoas que talvez nunca tivessem parado para pensar nisso.

E aqui está um ponto importante: usar o alcance para levantar um debate necessário é uma escolha. Uma escolha que nem todo criador de conteúdo faz e que, nesse caso, abriu espaço para uma reflexão coletiva sobre como a internet trata (e muitas vezes explora) crianças.

Meninos e meninas, todos vulneráveis

Quando falamos de exposição infantil, não estamos falando só de meninas. Meninos também estão sujeitos aos mesmos riscos e isso é algo que às vezes passa despercebido.

A série Adolescência, da Netflix, ilustra bem essa vulnerabilidade: jovens tentando encontrar seu lugar no mundo, ainda descobrindo quem são, enquanto lidam com pressões externas e expectativas irreais. A diferença é que, no universo das redes, essa fase de descoberta muitas vezes acontece diante de uma plateia global, que comenta, julga e arquiva tudo.

E aqui não se trata apenas de “mal-intencionados” embora esse seja um risco real. Trata-se também de como a exposição precoce molda a forma como a criança se vê, como constrói sua autoestima e como aprende a se relacionar com os outros.

Adultização e sexualização: o perigo invisível que atrai criminosos

Um dos pontos mais graves é como a adultização e a sexualização de crianças na internet atrai criminosos pedófilos.

Quando conteúdos mostram crianças de forma sensualizada, ainda que sob a justificativa de “fofo”, “engraçado” ou “tendência do momento”, isso não só distorce a forma como a criança é vista pelo público, mas também alimenta redes de compartilhamento de material abusivo.
Essas imagens podem ser salvas, manipuladas, trocadas e usadas para fins criminosos sem que a família sequer saiba.

E aqui não estamos falando de casos extremos isolados; basta que uma foto ou vídeo seja público para que esteja sujeito a ser capturado e redistribuído.
O risco é real, e não é paranoia. O próprio Ministério da Justiça e diversas ONGs que atuam na proteção infantil alertam que grande parte do material de exploração encontrado na internet tem origem em conteúdos inicialmente publicados por familiares ou responsáveis, muitas vezes sem intenção de prejudicar.

Minha escolha como mãe e criadora

Há algum tempo, escrevi sobre o motivo pelo qual decidi proteger a privacidade da minha filha na internet. A Cora aparece, sim, porque faz parte da minha vida, e parte do que compartilho envolve nossa rotina. Mas nada é publicado sem supervisão e reflexão.

Cuidado para mim, não é só escolher uma foto bonita ou um momento fofo. É pensar:

  • Isso vai expor algo que ela não entenderia agora, mas poderia se incomodar no futuro?
  • Essa imagem revela informações sobre onde moramos, estudamos ou frequentamos?
  • Eu gostaria que isso estivesse na internet se fosse sobre mim, na idade dela?

Essas perguntas se tornaram ainda mais importantes desde que me tornei mãe. Sempre fui contra a monetização baseada na imagem de crianças e a chegada da Cora reforçou essa decisão.

O problema da monetização de conteúdos infantis

Quando o conteúdo gira em torno de uma criança, ela não está ali por escolha própria. Pode até parecer que sim afinal, muitas gostam de aparecer, se divertem com a câmera, mas elas não têm a maturidade para entender o que significa ter sua vida exposta para milhares (ou milhões) de pessoas. Nunca vou me esquecer do relato da atriz Jennette McCurdy; sobre como sua mãe a colocou na indústria do entretenimento quando ela era criança e dos traumas que carrega.

E quando essa exposição é convertida em dinheiro, o cenário fica ainda mais delicado. Estamos falando de uma espécie de “trabalho” disfarçado de brincadeira, sem regulamentação clara, sem limites de jornada, sem garantias para o futuro dessa criança.

Além disso, a monetização cria um incentivo perigoso: quanto mais a criança aparece, mais engajamento e, consequentemente, mais lucro. Isso pode levar pais e responsáveis a ultrapassarem limites que, em outros contextos, jamais seriam quebrados.

“Ela vai entender quando crescer…”

Esse argumento é muito comum, mas é justamente aí que está o problema. Quando crescer, ela pode perceber que momentos que deveriam ter ficado na intimidade da família foram transformados em conteúdo público. Pode sentir vergonha, raiva ou até dificuldade para estabelecer limites em outras áreas da vida.

O mais preocupante é que, até esse amadurecimento chegar, o material já circulou, já foi salvo, comentado, remixado. Na internet, mesmo que você delete, não existe garantia de que algo realmente desapareceu.

Como proteger crianças online: caminhos possíveis

Falar de proteção não é criar pânico, é criar consciência.
Aqui estão alguns pontos que me guiam e que podem ajudar outros pais a pensarem antes de postar:

  1. Pense no futuro: Imagine seu filho vendo esse conteúdo daqui a 10 anos. Qual seria a reação dele?
  2. Cuidado com infomações sensíveis: Evite mostrar uniformes escolares, endereços, placas de carro ou a rotina exata da família.
  3. Respeite momentos íntimos: Crises de choro, banhos, momentos de vulnerabilidade NÃO devem estar online.
  4. Defina limites claros: Nem todo evento familiar precisa virar post.
  5. Supervisione o público: Mesmo perfis privados podem ter seguidores que você não conhece bem.
  6. Converse, conforme a idade: Explique que a internet é um espaço público e que nem tudo deve ser compartilhado.

O papel da conversa coletiva

A internet não é o álbum de fotos da família. É um espaço onde conteúdo circula sem controle, onde pessoas mal-intencionadas podem agir, e onde algoritmos priorizam o que prende atenção muitas vezes sem pensar nas consequências.

Por isso, conversas como essa são tão importantes. Elas nos lembram que, por mais que o desejo de compartilhar seja grande, o direito à privacidade e à proteção da criança precisa vir primeiro.

A denúncia do Felca fez muita gente parar para pensar sobre os próprios hábitos. Mostrou que não é exagero nem paranoia falar sobre isso. E reforçou que todos nós, pais ou não, temos um papel em manter esse cuidado, seja na forma como postamos, comentamos ou interagimos com conteúdo que envolve crianças.


E você?
Já parou para refletir sobre como expõe (ou deixa de expor) crianças nas redes sociais?
Quais limites você estabeleceu ou gostaria de estabelecer para proteger a privacidade delas?

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